Dois Irmãos

LEV Deixa-me ler.
ERICA O que é que sentes por mim?
LEV O quê?
ERICA Estás apaixonado por mim?
LEV Não.
ERICA Tinha medo que estivesses.
LEV Ah. E tu?
Fausto Paravidino, Dois Irmãos

Dois irmãos. Uma rapariga, um espaço fechado, uma cozinha, um crime. Que corpo é este que se intromete na vida dos dois irmãos? Que tragédia se desenha entre malgas de Corn Flakes e frascos de Nutella? Que serviço militar é aquele para que parte Lev? Que nomes russos são estes, os dos dois irmãos?

“Acabou o tempo das frases normais” (Lev)

Tragédia de câmara em 53 dias – o subtítulo de Dois Irmãos enuncia deste modo dois dos principais elementos que determinam a extraordinária tensão desta breve peça em 23 cenas, vencedora do Prémio Tondelli e reveladora do percurso extremamente interessante deste jovem autor, que conta já com oito peças: o pequeno número de executantes envolvidos nesta pequena dança macabra e o espaço fechado onde se desenrolará. “A acção desenvolve-se numa cozinha/ num apartamento/ numa cidade” – lemos também. Estamos perante uma geografia indefinida: a cidade não tem nome, os pais moram numa aldeia distante onde há um lago e há Outono, ou talvez não. As palavras mentem sem o dizer, as cartas escondem a verdade por trás das invenções. Três personagens, ou talvez duas, apenas. A necessidade de restabelecer uma geometria comprometida num triângulo inicial. E uma cozinha como palco da loucura.

“Não é um problema de relações, é só um problema de limpeza”, avisa Boris, o irmão mais velho. Se é a partir da denegação que se cria o diálogo, que se encena uma comunicação perturbada em que nas palavras há muito mais do que o seu sentido imediato, ou haja apenas o mesmo sem-sentido, é verdade também que, já a partir do título, somos lembrados de que é de um problema de limpeza, de estabelecimento de simetria que se trata. Dois irmãos, Boris e Lev, e um terceiro elemento, Erica, namorada, objecto comum de desejo. Fonte de perturbação, motor da “limpeza” que irá reconstituir a verdade do título, eixo em torno do qual vão girar as tensões que fazem da peça quase um “thriller” psicológico. Alianças e traições, conjunções e separações e o fantasma de uma ligação superior, de uma força maior, da força que liga o mais velho ao mais novo, a relação doentia de dois irmãos.

A combinação das personagens vai mudando, jogada em torno das entradas e das saídas. Saindo, as personagens colocam-se a salvo, mas estão destinadas a regressar e a pagar a sua deserção (como Lev soldado). “Tentei sair, não se pode? Acho que também vos fazia bem”, diz Erica. E será depois da única saída do irmão mais velho que a destruição tomará conta da cozinha.

Depois há as cartas, cartas faladas, gravações em cassetes, para os pais e depois para Lev. Cartas onde a mentira é intencional, onde é proibido dizer a verdade. Cartas que marcam a fronteira entre as “nossas coisas”, que dizem respeito apenas aos irmãos, e Erica, o elemento exterior, que vem perturbar a fronteira entre mentira e verdade (ou entre as cartas e a realidade da cozinha) com os seus jogos da verdade e da mentira.
A contaminação das palavras é irremediável e a crise inevitável. Somatizada por Boris, ganhará corpo na acção de Lev, que levará este diabólico jogo verbal até às últimas consequências. A música brutal criada para estes poucos executantes irá ser reduzida ao silêncio da ficção dos dois irmãos. Diz Boris: “Não sei se te estou a perguntar aquilo que queria” e responde o irmão: “Não te preocupes, também podemos não falar”. A redução dos músicos elimina a tensão e restabelece uma harmonia escura e silenciosa, feita agora de contacto físico. A sufocante força obtida por Paravidino neste texto ultrapassa o diálogo cerrado e a acção tensa e contida para iluminar essa cozinha perdida num mapa irreal. “A mãe gosta do Outono.” “Ela gosta de tudo.” “Porque é que não vamos lá vê-la?” “Com o nosso novo mercedes branco? Não podemos.” “Talvez de comboio.” “Não podemos.”

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