O teatro de Paravidino

O teatro de Fausto Paravidino tem-se desenvolvido em diferentes direcções. Na sua versatilidade, o jovem autor italiano desempenhou já várias funções: começando como actor, muito cedo se tornou autor (Trinciapollo foi a sua primeira peça, em 1996), colaborando também na escrita de guiões de cinema; traduziu textos de Shakespeare e Pinter, entre outros. De autor improvisado perante a falta de trabalho como actor, o seu percurso foi-se ligando cada vez mais à escrita: participou de duas acções de formação em Inglaterra, no National Theatre e no Royal Court; foi um dos primeiros autores a escrever a partir dos acontecimentos de Génova, e com duas peças muito diferentes. Tentar uma aproximação ao teatro de Paravidino a partir de um grupo de textos pode ser procurar algumas constantes, algumas obsessões recorrentes que, cruzadas com diferentes problemas, darão a cada nova peça novos resultados. Podemos então ficar pela primeira afirmação: não só no teatro, a presença de Paravidino em cena tem sido marcada por diferentes direcções, por diferentes resultados. Como lidar com essas diferenças, ou de que forma este teatro versátil se presta a algumas tentativas de leitura – para além das circunstâncias, dos meios e dos motivos – é o que tentarei ver aqui. Tomando como mote alguns momentos da peça 2 Irmãos.

– Tudo bem?
– Desde quando é que te interessas pela minha saúde?
– Não me interessa nada, são coisas que se dizem, por dizer, para abrir a discussão entre as pessoas.
– Temos que discutir? (Boris e Erica)

Em primeiro lugar, as relações. Porque parece ser esse, acima de todos, o campo de acção deste teatro. Como falam as pessoas (com as implicações a nível da língua que esta frase traz) e como falam as pessoas entre si. Começo por desviar, de forma evidente, a questão das relações para a fala, ou para o diálogo, por uma razão. O teatro de Paravidino é um teatro de frases, de frases cruzadas, de perigosos jogos verbais que por vezes são levados longe de mais. Ou sempre. As acções, as relações e o seu desenvolvimento têm como único palco essa troca nervosa, agitada, confusa e muitas vezes absurda de frases, de palavras. É por isso que é também muito interessante ler o teatro de Paravidino, ver o texto a construir um espaço sitiado. Num encontro, em 2003, entre os tradutores do Atelier Européen de la Traduction e o autor, Paravidino insistia, a propósito das relações entre tradutores e autores, na necessidade de o tradutor não se “apaixonar pelo texto”, de perceber que o que é dito interessa no quadro de uma troca, de uma tensão, de um jogo: e pode ser infinitamente substituído no contexto desse diálogo cerrado que constrói o edifício da peça. Teatro de frases, então, mas de frases que valem como peças de um perigoso jogo de montagem de relações. Como falam (ou não) as pessoas entre si, mais uma vez. Que relações de poder são jogadas nessa nervosa necessidade de falar. Estou a pensar nos diálogos de 2 Irmãos, música infernal para os poucos executantes dessa kammerspiel destinada a resolver um problema de geometria; ou mais directamente no questionamento da “comunicação” no seio da família M. em La Malattia della Famiglia M. Como se, por um lado, se sentisse o dever de falar (nem que seja para questionar o facto de que, para todos os efeitos, não se fala), mas por outro também o perigo implícito nessa acção. E são muitos os textos em que à acção de narrar (o médico em La Malattia), de escrever, de contar, só pode corresponder a desconfiança por parte de quem ouve (e lê). Porque as palavras, aqui, mentem mesmo quando dizem a verdade. E aí reside o crime de Erica, em 2 Irmãos: nesse perturbar a lógica da ficção com os seus jogos da verdade e da mentira. Nos quais, repare-se, nunca se mente.

não é um problema de relações, é um problema de limpeza (Boris)

A definição das vozes implicadas, a leitura do que é dito, a importância que lhe é atribuída, o que se pergunta e o que fica sem resposta: os tempos dessa difícil troca irão marcar o ritmo dessa evolução das relações. Por outro lado, esse jogo do relacionamento tem também outro fascínio: experimentar, a partir de um número reduzido de participantes, as diferentes possibilidades de combinação e os seus resultados. A família será, por razões óbvias, o núcleo ideal para essa representação dos possíveis: a insanidade e a indissolubilidade dos laços familiares a pautarem os “nós” (no sentido que lhes dá R. D. Laing, talvez), os modelos lógicos tortuosos que aqui vão determinar a circularidade do discurso. Este jogar com pressupostos postos à prova e reformulados em diferentes combinações tem no seio da família a figuração terrível do equilíbrio e da compensação: a personagem feminina de 2 Irmãos eliminada em nome de uma ordem refundada – a dos irmãos – em que já não é preciso falar; o falador e insistente Gianni, na família M., sacrificado para o restabelecimento de alguma ordem depois da morte da mãe. E aí se percebe o efeito da “limpeza” sobre a construção geométrica: o triângulo que sobrevive à crise “narrada” pelo médico (as duas filhas reconciliadas e o pai) a substituir o quarteto perturbado em torno do vazio deixado pelo suicídio da mãe. Nos dois casos referidos, a morte poderá ser ao mesmo tempo a consequência da tensão do diálogo e o único elemento que permitirá um regresso ao silêncio. No entanto, a família não é o único campo de teste: já desde Trinciapollo, em que o atónito Marco era confrontado com um insolúvel problema que partia precisamente da falta de relações – desencadeado pela irrupção de dois homens desconhecidos no seu apartamento e pela morte de um deles –, o percurso ascendente do protagonista mostrava que a não consequencialidade está na base do diálogo. Mas era, também aí, um problema de parentesco (pode-se ter em casa um morto que não se conhece?), como sublinha a confusão cómica com os polícias entre apelidos e relações familiares envolvidas; a resolver-se, da maneira mais improvável, numa “camusiana” responsabilização redentora. Mas é num dos dois textos dedicados a Génova que a questão se vai revelar mais presente. É importante referir em conjunto os dois textos porque, num certo sentido, é de uma dupla que se trata: à coralidade de Genova 01 (em que é também de vozes, de fala que se trata) vai seguir-se um texto mais próximo da linha que até agora referi, propondo um cruzamento entre essa encenação para poucos executantes em espaços fechados e os acontecimentos de Génova. Ponto de partida para a peça terá sido a constatação de que o jovem carabiniere que disparou em Génova era coetâneo do jovem morto. Noccioline faz depender a sua construção de uma divisão em duas partes, em que as personagens, com nomes deturpados dos Peanuts de Schulz, vão ser primeiro adolescentes e depois adultas (sem que tenham memória, no segundo momento, dessa cena passada e – mais importante – tendo passado por uma “formatação” das relações exibidas anteriormente). A primeira parte encena mais um “problema de limpeza”: um grupo de amigos invade a casa que um deles supostamente teria de guardar, começando por sujar e mais tarde por destruir – destruição e progressão construída, mais uma vez, no encadeamento de um diálogo, desta vez organizado segundo os tópicos do discurso antiglobalização. Vendo o espaço da responsabilidade sitiado, e perante o regresso do filho dos donos, Buddy/Charlie Brown irá renegar os amigos na pressão de uma troca de frases. Na segunda parte, com os mesmos nomes (e os mesmos actores), as personagens vão ser divididas por dois grupos: numa esquadra de polícia, uns torturam e outros são torturados. Percebemos as implicações de certas falas da primeira parte, e percebemos, mais uma vez, esse infernal mecanismo da combinatória dos possíveis em Paravidino: testar e definir trajectórias a partir dessa situação que se fez explodir num espaço fechado. É nesse quadro que a resposta de Buddy em que afirma não conhecer os amigos pode reaparecer como ponto de não retorno: na construção do diálogo e da situação tensa da invasão reside o elemento detonador de um destino, de um percurso, de uma trajectória -- que se resume, em Noccioline, a estar do lado dos que matam ou dos que se deixam matar. Mas o importante é que esse ponto seja, mais uma vez, o culminar de uma espantosa construção verbal, de um levar ao extremo a tensão das relações através do choque, através do enclausuramento, no espaço da cena, dessas vozes destinadas a criar ruído até que a violência verbal se materialize de algum modo. Como morte. Como em Genova.

– Porque é que não a vamos visitar?
– Com o nosso novo Mercedes branco? Não podemos.
– Ou então de comboio.
– Não podemos. (Boris e Lev)

O diálogo aparece então isolado, fechado sobre si, campo de tensão definido pelos seus elementos internos. A isso corresponderá também a representação do espaço, sublinhando o ambiente claustrofóbico em que se inscrevem estes diálogos muitas vezes próximos da loucura. Para além da recorrência ao modelo da kammerspiel, para além da insistência sobre a marcação de entradas e de saídas (saídas muitas vezes impossíveis, ou quando possíveis, com consequências nefastas – pensa-se na saída de Boris no fim de 2 Irmãos ou na saída de Gianni em La Malattia), para além da representação insistente de espaços fechados (cozinhas, corredores, salas, salas de tortura) de onde não se sai, a representação do espaço é atravessada também por um efeito de desterritorialização que faz com que a indefinição em que se mergulham estes lugares tremendamente carregados de sentido os suspenda num mapa feito também de polarizações destinadas a sublinhar esse isolamento. “A acção desenvolve-se numa cozinha/ num apartamento / numa cidade” (2 Irmãos): a cidade não tem nome, os pais moram num lugar distante onde há um lago e há Outono, ou talvez não. Abstractas construções espaciais, referentes esvaziados, deixando apenas a tensão dessa polarização: cá/lá. O apartamento de Marco Parodi vive da mesma indefinição: invadido, de fora, por uma série de ocupantes, sem que nenhuma contextualização possa estabelecer uma causalidade. Talvez mais eloquente seja o caso de La Malattia della Famiglia M., peça baseada, desde o limiar, na construção do espaço de uma pequena povoação ao lado de uma via rápida, “como no Far West”, em que todos se conhecem e ninguém se conhece (como nas palavras de Gianni ao pai: “Nunca conheci ninguém que a minha irmã conhecesse” e, pouco depois, no mesmo diálogo: “Sei sim. Conheço todos os amigos dela”), em que a única coisa que se pode fazer é rolar pela auto-estrada em busca de acidentes. Que acabarão por acontecer.

acabou o tempo das frases normais (Lev)

O que dá força aos rápidos diálogos de Paravidino pode considerar-se já contido numa nota à sua primeira peça, Trinciapollo: aquilo que as personagens dizem parece ao mesmo tempo despropositado e absolutamente necessário. Sobre isso, Paravidino falará em várias entrevistas, respondendo a questões de tradução e de direcção de actores. Que as suas peças, em muitos casos, são atravessadas por uma explosiva carga cómica (pense-se em 2 Irmãos, por exemplo) é inegável; mas também é difícil negar que essa comicidade é corrosiva e parece materializar de forma extremamente forte a contaminação do discurso pela violência que levará a que a linguagem seja, antes de mais, o palco do crime. E é explosiva sobretudo porque não é uma comicidade construída enquanto tal. Quando Paravidino fala da necessidade de os actores não dizerem as frases com consciência do efeito cómico que podem provocar, tocamos nessa necessidade absoluta de se responder daquela maneira, mesmo que seja absurdo, mesmo que seja perigoso, mesmo que possa levar à loucura (o diálogo Boris-Lev que antecede a crise em 2 Irmãos, o último discurso de Gianni em La Malattia...) – o efeito de comicidade, mais uma vez, é um efeito explosivo desse contexto fechado. Esse efeito prende-se também com a questão da língua, com o facto de as personagens falarem normalmente no seio do maior desequilíbrio; numa linguagem quotidiana, normal nos jovens que habitam as suas peças, esse desequilíbrio é construído passo a passo, nó a nó. As personagens de Paravidino, como as de Trinciapollo, falam aterrorizadas pela ideia de cometer um erro (“por isso todos devem representar com o tipo de tensão de quem está aterrorizado pela ideia de dizer a coisa errada”, diz Paravadino na nota inicial à primeira peça): o perigo da interpretação, o perigo da não compreensão, o medo de toda e qualquer reacção às palavras torna-se obsessivo porque as personagens não têm para onde ir. Assim, a fascinação geométrica destes textos acompanha as personagens na exposição exagerada dos seus remoinhos argumentativos, dos seus impasses lógicos, para que, uma vez construídos, estes apenas possam levar a explosões que são, ao mesmo tempo, libertação e conclusão da peça enquanto espaço dependente desse conflito construído. Por isso, muitas vezes, deixarão de falar; por isso, muitas vezes, perderão até a necessidade de falar. E nas crises que resolvem os conflitos (num nó cego?) as personagens de Paravidino dissolvem também o espaço fechado da peça.

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